sábado, abril 19, 2008

Curta











Projeto de Curta Metragem:

“Jardim do Éden”

Argumento: Carlos Henrique Souza.


Sinopse:

Luíza e Hugo se conheceram na noite anterior numa dessas boates barulhentas, em que as pessoas limitam-se a se esbarrarem umas nas outras. Vão para um quarto de motel e na manhã seguinte não se reconhecem mais. As mentiras ditas na noite anterior - para impressionarem um ao outro – vão aos poucos caindo por terra. Numa espécie de acerto de contas com a vida, com seus medos, frustrações, carências afetivas, dilemas existenciais.
Ao final serão expulsos do Jardim do Éden de uma vida monótona, fria e sem tempero algum, onde ninguém sobreviverá.

Perfil Psicológico dos Personagens:

Luíza, 36 anos, formada em literatura inglesa. Trabalha numa agência de publicidade, é também tradutora. Mora sozinha há 8 anos. Recém saída de um relacionamento “aberto”, opta por só se relacionar com completos desconhecidos sem um envolvimento mais denso. Pensa em fazer mestrado na Irlanda no próximo ano. Na verdade é mais um meio de fuga para escapar da sua rotina estafante de urbanóide worklolic.

Hugo, 38 anos, após três faculdades incompletas já se conformou em ser um completo fracassado. Economicamente inviável. Tenta não ser duplamente fracassado também nos relacionamentos, mas só tem colecionado seguidas decepções. A última foi uma mulher 10 anos mais velha, que o trocou por uma mulher 20 anos mais nova. Prometeu que não mais se relacionaria com ninguém que não fosse um completo desconhecido, e só por uma noite apenas. Até encontrar Laura, ou será Luíza?

Cenário:

A ação se passa em um quarto de motel ou no quarto do Hugo. Ambos estão dormindo seminus. Laura acorda, olha para o lado e não se lembra quem é o homem com quem dormiu. Nem como veio parar naquele lugar. E ela nem gosta muito de quartos de motel. Ao se vestir, Hugo acorda e começa então toda a ação.

Hugo – Aonde você vai Laura?

Luíza – O que? Quem?

Hugo – Eu perguntei aonde você vai tão cedo?

Luíza – Do que você me chamou mesmo?

Parte 2

Hugo – Laura. É esse o seu nome, não é?

Luíza – É, quer dizer, não.

Hugo – Mas foi esse que você disse que se chamava ontem, quando nos conhecemos...

Luíza – Eu não me lembro quase nada das coisas que fiz e disse na noite anterior.

Hugo – É uma pena, pois nós tínhamos feitos vários planos para ficarmos juntos.

Luíza – Vários, é?

Hugo – Sim, vários. Inclusive, combinamos de passar-mos o natal em Gramado.Você disse que tinha parentes por lá. Mas é sério mesmo, você não se lembra de nada?

Luíza – As pessoas não costumam levar em consideração palavras ditas entre doses de cuba, mojito e fumaça de carlton.

Hugo – Mas com você parecia ser diferente.

Luíza – Sempre parece... Até a próxima decepção. Mas o que é que se há de fazer?

Hugo – Você é sempre assim?

Luíza – Assim como?

Hugo – Fria, pragmática.

[Luíza acende um cigarro]

Luíza – São características essencialmente masculinas não? Além de ser dois belos adjetivos. Confesso que nunca fui chamada de fria e pragmática numa mesma noite por uma mesma pessoa. Deve ser um sinal...

Hugo – Também pensei em outros adjetivos, quer ouvi-los?

Luíza – Não, guarde-os para você. Quem sabe em outra ocasião.

Hugo – Pelo visto não com você.

Luíza – É, acho que não.

Hugo – Me dá um cigarro?

Luíza – Você fuma, é?

Hugo – Sim, por que algum inconveniente?

Luíza – Absolutamente.

Parte 3

Hugo – Ótimo.

[Hugo ascende um cigarro]

Hugo – Devo ter bebido muito ontem. Tava precisando. Ultimamente tenho tido dias de cão.

Luíza – E quem não tem tido dias de cão hoje em dia, não é mesmo? Dizem que é mal do século. Sinal dos tempos. Eu particularmente nunca acreditei muito nisso não.

Hugo – Acho que estamos todos vivendo a síndrome de “Último Tango em Paris”.

Luíza – Como assim?

Hugo - Essa coisa meio autodestrutiva de se relacionar com estranhos sem nem ao menos saber seu nome.

Luíza – Mas no filme era Marlon Brando e Maria Schneider, não é meu bem ? Não era um casal qualquer. Ela era bem mais resolvida sexualmente e afetivamente que ele. Logo no início já dá para perceber que ele é uma pessoa bastante atormentada. Além de machista. Obrigar ela a fazer sexo anal. Quase um estupro, assim, como forma de subjugação. Detestaria que alguém fizesse isso comigo.

Hugo – Mesmo que essa pessoa fosse o Marlon Brandon, num apartamento em Paris?

Luíza – Não sei... Num apartamento em Paris, com Brandon. A que se pensar na possibilidade...

Hugo – É, não sou nenhum Marlon Brandon e creio não estarmos em Paris.

Luíza – E eu não nenhuma Maria Schneider. Estamos quites.

Hugo – Ficção é sempre melhor que a realidade. Logo, cinema é meio de escape de uma vida desinteressante. Lembra de Mia Farrow em “A Rosa Púrpura do Cairo”. Assiste ao mesmo filme toda noite como forma de escapar da vida tediosa proporcionada pelo marido canalha viciado em jogatina que a explora descaradamente.

Luíza – É, mas mais cedo ou mais tarde ela teve de enfrentar a sua própria mediocridade cotidiana. Além da quase traição do ator do filme, alvo de sua adoração, que no final acaba por preferir volta à sua “realidade” das telas. Uma excelente metáfora.

Hugo – Mas ficou a lembrança de ruptura com as suas mazelas domésticas, mesmo que de um modo efêmero. Isso por si só vale a pena.

Luíza – Você é um tanto romântico, não?

Hugo – Sou cinéfilo. Gosto de apreciar boas tramas.

Luíza – Essa posição de mero espectador não te incomoda? Quer dizer, é muito cômodo, não participar dos atos de uma peça. Por medo de sofrer, se decepcionar.

Parte 4

Hugo – Nunca pensei sobre esse prisma. Interessante. Mas você também adota uma posição muito cômoda no momento em que sai na noite para se relacionar com estranhos sem envolvimento afetivo algum. Isso também não se configura assistir uma peça e não participar dos atos efetivamente?

Luíza – Sim e não. Se você opta por se relacionar com pessoas desconhecidas, sem envolvimento afetivo não quer dizer que você estará o tempo todo no piloto automático e não sinta alguma coisa, que necessariamente seja amor ou algo que do tipo.

Hugo – Quer dizer que você sentiu algo quando ficamos essa noite?

Luíza – Sinceramente, não lembro. Mas isso é realmente importante?

Hugo – Você está se esquivando de novo Laura. Digo Luíza.

Luíza – Sabe estou em uma encruzilhada, me formei há 8 anos tenho um bom emprego, faço alguns freelas como tradutora, mas me sinto estagnada. Não consigo manter um relacionamento estável, nem tampouco encontrar aquilo que vai me tirar do marasmo profissional no qual me encontro.
Eu não quero parecer ingrata, mas não acho que eu esteja produzindo como deveria. Não consigo dar vazão ao meu potencial no meu atual ofício. Você me entende?

Hugo – Eu tenho no currículo três faculdades incompletas. Acho que sei o que você está passando.

Luíza – É mesmo? Quais foram os cursos?

Hugo – Comecei fazendo belas artes, depois história e por último, comunicação. Não consegui me adaptar a rotina de uma faculdade. Aquelas festas de repúblicas intermináveis e todas iguais. Professores egocêntricos, alunos mais preocupados com a última tendência da moda ou o último carro do ano. Basicamente foi tédio. Além de eu ser muito Macunaíma, sabe: Aí que preguiça!

Luíza – Já eu sempre tive muita disposição para a vida. Sempre briguei muito para alcançar os meus objetivos. Você sabe mulher no mercado de trabalho tem que cortar um dobrado para se impor. Sem falar o salário inferior ao dos homens. Não é fácil ser uma mulher empreendedora mesmo nos dias de hoje.

Hugo – Deve ser mesmo.

Luíza – Estou dizendo, para conseguir um cargo de chefia você tem que ter uma puta formação nas costas.

Hugo – De repente o que você sempre precisou foi mais leveza, se levar menos a sério.

Luíza – É, e quem vai pagar as minhas contas? Algum marido possessivo e machista que acha que o lugar da mulher é pilotando um fogão ou com a barriga molhada colada ao tanque? Não meu bem, nem pensar!

Parte 5

Hugo – Não estou falando de se castrar profissionalmente. Estou falando de não se importar tanto com status, grana, superação do sexo masculino. De repente isso nem tem tanta importância.

Luíza – As coisas têm a importância que damos a ela. Logo essas coisas num escala de prioridades estão no topo.

Hugo – Não está na hora de você rever essas prioridades?

Luíza – Talvez.

Hugo – Você só diz isso?

Luíza – Diz isso o que?

Hugo – “Talvez”, nunca diz uma resposta mais direta.

Luíza – Até onde eu sei você mal me conhece e já está tirando conclusões apressadas sobre mim?

Hugo – Eu não preciso te conhecer desde a mais tenra idade para saber que o motivo da sua “estagnação” é a sua obsessão por status, grana.

Luíza – Você me subestima tanto a ponto de me reduzi a uma mera feminista caricata que só pensa em status, igualdade dos sexos e todos esses clichês baratos da década de 70? Quer que eu também faça uma análise apressada sobre a sua personalidade? Eu não sei se te disse, mas eu sou boa nisso.

Hugo – Por que você está sendo cínica comigo?

Luíza – [sarcástica] Eu estou sendo cínica com você? Me desculpe não foi essa a minha intenção. É que eu não gosto que estranhos fiquem me analisando sem o meu consentimento e me digam o que fazer.

Hugo – Desculpe, não vou mais te amolar.

Luíza – Desculpe, é que não ando muito bem ultimamente.

Hugo – E quem não anda, não é mesmo? Eu estou com a mediocridade até o pescoço. Já pensou asfixia por excesso de mediocridade?

Luíza – Já eu estou com ela até a altura do joelho e subindo assustadoramente...

Hugo – Deve ser como você disse mal do século.

Luíza – Dos séculos...

Hugo – Você já assistiu a aquele filme do Almodóvar em que a personagem da Cecília Roth perde o filho, e sai à procura do pai do garoto?

Parte 6

Luíza – “Tudo Sobre Minha Mãe”.

Hugo – Isso.

Luíza – E daí?

Hugo – Deve ser a mesma sensação que você está sentindo, não?

Luíza – Não entendi.

Hugo – É uma metáfora. Como se a perda do “seu filho” fosse a morte do seu cotidiano, os seus planos, desejos, sonhos frustrados por algum motivo. E a busca do “pai” fosse a busca por algo maior, uma explicação do por que do descaminho da vida, entendeu?

Luíza – Interessante.

Hugo – E no final o pai do garoto é um travesti. Quer dizer não se encontra uma explicação aceitável para as questões anteriores. O peso insofismável do fracasso.

Luíza – Subalimentada dos sonhos.

Hugo – Não sei. Acho que isso é mais uma auto-análise minha do que sua. Desculpe. Como disse tenho tido dias de cão. Estou no olho do furacão há anos.

Luíza – Por que a gente faz isso Hugo?

Hugo – Faz isso o que?

Luíza – Por que nós simplesmente não facilitamos as coisas.

Hugo – Continuo não entendendo...

Luíza – Complicar menos as coisas. Se preocupar menos. Se levar menos a sério. Se doar mais sem cobranças inúteis. Desejos de posse em relação ao outro. Sabe, menos joguinhos que não levam há lugar nenhum. Ciúmes bobos. Pactos de felicidades que nunca existiram. Você me entende?

Hugo – Acho que sim. Também já pensei nisso várias vezes.

Luíza – Já chegou a uma conclusão?

Hugo – Acho que os seus/meus questionamentos já respondem as questões iniciais. Quer dizer, temos vocação para sofrer ou não sabemos amar como deveria? Ou as duas opções?

Luíza – Acho que prefiro ser devorada.

Hugo – O que?

Luíza – O enigma da esfinge: “Decifra-me ou te devoro”.

Parte 7

Hugo – Ou o bloco de carnaval que ao chegar num beco sem saída dá cinco passos para frente e três para trás.

Luíza – Como naquela canção: “Todo carnaval tem seu fim”.

Hugo – E nós nem estamos na quarta-feira de cinzas.

Luíza – Senhora do silêncio.

Hugo – O que?

Luíza – Era como Fernando Pessoa chamava a lua.

Hugo – Linda a expressão.

Luíza - Ontem foi noite de lua cheia, não?

Hugo – Não me lembro.

Luíza – Uma vez fiz sexo numa praia deserta. Era uma noite linda. A lua estava lá no céu, bola dourada. Lembro que depois fomos nus para o mar, banho de lua. Foi a minha primeira decepção amorosa.

Hugo – Com a transa ou com a pessoa?

Luíza – O sexo foi ótimo, mas o cara... Caí na besteira de dizer para ele: eu não existo sem você. Sabe como é: não demonstre dependência afetiva de homem algum ou ele te fode. Tipo: consegui seduzi-la e comê-la, agora não tem mais importância. Vou atrás da próxima vítima.

Hugo – Acho que você está sendo muito simplista, reducionista. Achar que todos os homens são canalhas é recalque feminista. As pessoas são mais complexas e subjetivas que uma mera análise apressada psedo-freudiana.

Luíza – Você diz isso porque é homem. E vocês são corporativistas.

Hugo – Não se trata de ser homem ou corporativista, e sim por não concordar com a idéia de que todos os homens são canalhas, escroques e insensíveis a ponto de não merecerem o crédito feminino.

Luíza – O que afinal você quer? Está falando horas a fio e não consegue ser objetivo um minuto sequer. Você quer me enlouquecer? É isso, você quer me enlouquecer?

Hugo – Não meu bem, não quero te enlouquecer> Aliás, isso nunca passou pela minha cabeça. Eu só não gosto de analisar as coisas por um viés manisqueísta.

Luíza – Ah, e por qual viés você gosta de analisar as coisas?

Hugo – Por um viés menos preconceituoso e lugar comum possível.

Parte 8

Luíza – Vê-se que você não tem muita experiência com relacionamentos.

Hugo – É posso até não ter mesmo, mas sei relativizar as atitudes supostamente sem explicação do outro.

Luíza – Quem se importa? Você não tem alguma bebida para servir aos seus visitantes, não?

Hugo – Tenho vinho tinto, mas você não acha que é muito cedo para beber?

Luíza – Te pedi uma bebida não conselhos matinais. O que você é? Alguma espécie de ex AAA?

Hugo – Não, é que parei de beber faz algum tempo. Fui ex-alcoólatra.

Luíza – Sei ex-alcoólatra que guarda vinhos na despensa...

Hugo – Como você bem disse é para as possíveis visitas não ficarem com a boca seca.

Luíza – Não tem nada de mais mesmo. É como um ex-usuário de drogas que mantém uma pequena quantia para o consumo dos amigos. Muito amável de sua parte.

Hugo – Você não dá o braço a torcer mesmo, não é?

Luíza – Algum inconveniente nisso?

Hugo – Acho que não.

Luíza – Coloca uma música pra gente.

Hugo – Mas, é claro. O que você gostaria de ouvir?

Luíza – Algo que preste, de preferência. Confio no seu bom gosto.

Hugo – Deixe-me ver. Gosta de Chico?

Luíza – Não, muito sentimental.

Hugo – Nina Simone?

Luíza – Voz muito andrógena.

Hugo – Miles Davi, então?

Luíza – Miles Davis me dá sono.

Hugo – Difícil hein? Quem sabe Ella Ftzgerald?

Luíza – Você só ouve jazz?

Parte 9

Hugo – Ouço um pouco, por que, você não curte?

Luíza – Não dessa forma obsessiva.

Hugo – Não ouço jazz obsessivamente. Por que você mesma não escolhe o que quer ouvir?

Luíza – Você tem algum cd da Marina?

Hugo – Marina Lima?

Luíza – Sim, sim Marina Lima. Você conhece alguma outra cantora chamada Marina?

Hugo – Nossa como você é cínica!

Luíza – E como você é sentimentalóide. Estamos quites.

Hugo – Você vai escolher o cd ou não?

Luíza – Tá bom, que mau humor horroroso.

Hugo – Você ainda não viu nada...

Luíza – uhhhhh. Devo ter medo agora ou depois do seu acesso de fúria?

Hugo – Você não vai conseguir me destemperar.

Luíza – Achei. Adoro esse cd. Marina Lima “O chamado”. [Luíza coloca o cd seleciona a faixa, e ouve quase em êxtase]

Hugo – Também gosto dessa música.

Luíza – “... O céu deve ser assim, o céu deve isso a mim...”, cantarola.

Hugo – Não gosto muito da Marina, só de algumas músicas.

Luíza – Já eu adoro.

Hugo – Ela não anda numa fase muito boa.

Luíza – Pra mim ela está ótima. Essa é a diferença entre ser fã e ouvinte ocasional.

Hugo – Não isso é saber separar o lado fã do senso critico. Reconhecer um mau momento do ídolo. Não deixar a tietagem te cegar para golpes de marketing inescrupuloso de gravadoras.

Luíza – Então sou eu quem deveria se levar menos a sério?

Hugo – Não entendi a associação.

Parte 10

Luíza – Deixa pra lá.

Hugo – Deixa pra lá nada, agora fala.

Luíza – Tenho que ir embora. Já é tarde.

Hugo – Mas já? Ainda temos muito que conversar.

Luíza – Conversar sobre o que? Até o momento você não perdeu uma única chance de mostrar para mim o quanto você é superior intelectualmente que eu. Além de mais maduro e sexualmente mais resolvido do que eu. Me senti a noite inteira na presença do meu irmão mais velho. O mais experiente, esclarecido, racional... Já passei por isso e o saldo não foi bom.

Hugo – Desculpe se a impressão que causei em você não foi das melhores.

Luíza – Também não devo ter causado uma boa impressão em você.

Hugo – Claro que não. Tirando um egocentrismo aqui e uma certa futilidade acolá, até que o resultado foi positivo.

Luíza – Eu realmente preciso ir.

Hugo – Não vá ainda.

Luíza – Sinto muito, tenho que ir.

Hugo – Deixe pelo menos o seu telefone.

Luíza – É melhor não. A gente se vê na noite qualquer dia desses.

Hugo – Mas, deixe eu me explicar. Desculpe os vários furos que dei essa noite.

Luíza – Não tem nada a ver com você é que realmente tenho que ir.

Hugo – Mas assim do nada? Precisamos nos conhecer melhor.

Luíza – Passamos uma noite juntos, não foi o bastante?

Hugo – Mas você mesma disse que não se lembra de nada sobre a noite anterior?

Luíza – Lembro o bastante para não querer prolongar essa conversa.

Hugo – Laura, quer dizer Luíza me de mais uma chance.

Luíza – Hugo não faça isso, não é nada com você. É que realmente preciso ir.

Hugo – Então vai sua puta. É isso mesmo, você não passa de uma bela de uma puta. Tá pesando que pode chegar aqui e brincar com os sentimentos dos outros? Agora nem que você me pedisse de joelhos eu ia te querer mais. Isso vai embora de uma vez.

Parte 11

Luíza – É melhor eu ir mesmo. Você está descontrolado. Detesto homens descontrolados.

Hugo – Suma de uma vez sua desgraçada! Maldita hora em que te conheci.

Luíza – A gente se vê por aí.

Hugo – Se depender de mim, não. Sua vampira de sentimentos. É isso o que você é. Sai na noite vampirizando os outros. Você é uma caricatura dos cafajestes com quem se envolveu e foi abandonada por eles.

Luíza – Mau perdedor. Não lida bem com fracassos, é?

[Hugo ameaça jogar um copo em Luíza e ela sai]

Hugo – Vaca!

Hugo procura por algo dentro do armário. Vai jogando todas as roupas pra fora, até encontrar uma garrafa de uísque.

Hugo – E quem se importa com mulheres. São todas vadias. Exploradoras.

{Bebe no gargalo mesmo]

Hugo – Mas você parecia ser diferente Luíza. Por que você foi me abandonar sua bandida. Você nunca será feliz sem mim.

[Bebe de novo]

Hugo – Amanhã te procura meu amor. [Cheirando uma peça de roupa que Luíza esqueceu na cama]

Hugo - Vou te encontrar até no inferno, meu amor. Eu te amo. Nascemos um para o outro.

[Hugo bebe mais e procura o cd da Marina seleciona a faixa favorita de Luíza e se deleita]

Hugo – Ela teria gostado do cd do Miles Davis. É impossível não gostar do Miles Davis. Até a Heloísa gostava. Ela ainda gostaria se não tivesse me abandonado. Aquela cachorra. As mulheres são todas iguais. Sentimentais, frígidas. Mas a Luíza parecia ser diferente.

[Bebe de novo]

Hugo – Luíza você ainda vai ser minha. Ou não me chamo Luís.

domingo, setembro 02, 2007









Projeto de roteiro:“O Exílio Delicado da Paixão”

Argumento: Carlos Henrique Souza
Clarice e Marcos jantam. Aparentemente tudo segue como nas noites anteriores. Comentários sobre como foi o dia no trabalho. Transito lento na volta para casa. O calor excessivo dos últimos dias. Da urgência de férias para ambos. Até que, uma discussão banal sobre o tempero da comida deflagra uma guerra verbal entre ambos. Medos, rancores e frustrações vêem a tona como as bolhas do proseco que teimam em dançar freneticamente em suas taças.Ao final daquela noite restarão somente cacos de si mesmo e daquilo que pensavam que seriam.Clarice: “Naquele tempo em que o ar estava impregnado com aquele odor primaveril.”Marcos: “Resta esta manhã com gosto de desesperança.”
Marcos - [para si mesmo] O peixe ficou salgado.
Clarice - Repete.
Marcos – O que?
Clarice – Repete o que você falou.
Marcos – Eu não disse nada.
Clarice – Disse sim! Eu ouvi.
Marcos – Você deve estar ouvido coisas. É o que você tem feito ultimamente: ouvir coisas...
Clarice – Não me diga. E o que eu tenho feito mais ,além de, ouvir coisas supostamente dita por você?
Marcos – Por que você tem sempre que se sentar à mesa de de mau-humor?
Clarice – Eu nunca disse isso!
Marcos – Não disse. Eu é que estou lhe perguntando.
Clarice – Ah, eu é que janto de mau-humor?
Marcos – Quase todos os dias...
Clarice – Estou cansada desse seu exibicionismo alado. Aliás, tenho tido overdoses de tédio ao seu lado.
Marcos – Me passa o salmão.
Clarice – Quando morrer, você será velado pela sua idiotice, e enterrado junto com as suas várias brochadas na cama.
Marcos – Falou o oráculo infalível!
Clarice – Infalível é essa sua eterna mania de repetir-se a cada minuto.
Marcos – Você usa metáforas em demasia.
Clarice – E você usa o seu cérebro muito pouco. Inteligência é afrodisíaco, sabia?
Marcos – Não foi inteligência que me atraiu em você...Aliás, não consigo me lembrar o que me atraiu em você especificamente?
Clarice – Seu QI é de 85 não é mesmo?
Marcos – Isso não quer dizer nada.
Clarice – Sharon Stone tem Q.I de 102...
Marcos – E ela tem haver conosco?
Clarice – Nada.
Marcos – Onde você leu isso?
Clarice – O que?
Marcos – Que o Q.I da Sharon stone é de 102?
Clarice – Onde mais? Na internet.
Marcos – E pensar que você se vangloriava de dizer que tinha acabado de ler o último livro do Saramago...que decadência.
Clarice – Por sua causa já estou conseguindo acostumar-me com a mediocridade alheia.
Marcos – Você é a confirmação da minha mediocridade irremediável.
Clarice – Os seus fantasmas já não estão cansados de ficarem amontoados no seu guarda-roupas?
Marcos – Metafísica agora, pô? Dos meus fantasmas cuido eu. Fique fora disso!
Clarice – Falta-lhe o álibi da ignorância.
Marcos – Nunca precisei de álibi.
Clarice – Me dá um cigarro?
Marcos – Não gosto de dividir meus cigarros com estranhos.
Clarice – Você dormiu com uma estranha por oito anos. Isso deve fazer alguma diferença.
Marcos – Não com você.
Clarice – Covarde, isso é o que você é!
Marcos – Não adianta elogiar.
Clarice – Deus costumava punir escroques como você.
Marcos – Isso foi há muito tempo. Além do mais, Deus é amor, lembra?
Clarice – Intelectual prolixo desvairado!
Marcos – Parece que fui pego em flagrante.
Clarice – Não se preocupe que eu escreverei o seu epitáfio.
Marcos – Ah, é? E o que vai escrever na lápide?
Clarice – “O coveiro pediu demissão ontem. Fizemos o possível.”
Marcos – A saudade é um proletariado desempregado.
Clarice – Que vontade de assassinar à pauladas esse seu ar superior de burguês decadente.
Marcos – Fique à vontade meu bem.
Clarice – Santo Expedito, me socorra!
Marcos – Ele não está para hereges como você.
Clarice – Não se intrometa, isso é entra mim e ele.
Marcos – [para si] Agora ela fala com santos... onde eu fui me meter?
Clarice – Acho que os seus pecados já secaram no varal. Quer que eu os recolha?
Marcos – Não se dê trabalho, você já tem os seus para se preocupar.
Clarice – Você irá direto para o inferno por superávit de pecados e amoralidades.
Marcos – Desde quando te trair é considerado amoral ou um pecado digno de uma punição tal como uma estadia prolongada no inferno? Ah, a boa e velha Clarice, sempre egocêntrica e prolixa.
Clarice – Prefiro você ao natural, meu bem. Essa auto-caricatura de cafajeste sem escrúpulos não combina com você. Aliás, combina e muito. Tirando, é claro, o cinismo. Esse é chupado de “Manuais de como torturar suas ex-atuais namoradas sem se despentear.” Você se superou caríssimo.
Marcos – Você nunca gostou muito de matemática, não é mesmo? Pois vou te explicar uma equação que consegui resolver a poucos dias: Clarice+Marcos+dias vividos juntos=tédio. Entendeu ou quer que desenhe?
Clarice – Cavalo manco vindo de uma guerra perdida.
Marcos – Você só consegue se comunicar através de metáforas? Já está ficando cansativo.
Clarice – Faço parte de um triangulo amoroso, ou o que? Sim, pois tenho que dividir você com as metáforas que “utilizo em demasia”.
Marcos - Chega dessa música de elevador!
Clarice - Envenena-me com a tua ignorância.
Marcos - Por que vocês mulheres tem sempre que usar velhos clichês feministas tirados de romances baratos de banca de jornal?
Clarice - Vai continuar com essas grosserias no varejo ou vai apelar para o atacado?
Marcos - Que falta me faz uma garrafa de jack daniels...
Clarice - Prefiro uma boa trepada. Sem brochadas, é claro.
Marcos - Até que você conseguiria um emprego de puta num cabaré que frenquetei certa vez. Com bastante assiduidade, devo dizer...Esse traseiro faria o maior sucesso . Acho que está ai a solução. Você precisa de uma boa trepada. De preferência com um completo desconhecido. Para não cansa- lo na manhã seguinte com indagações idiotas.
Clarice - Já que você fracassou nessa e em outras obrigações de macho...sinto que o som da velha Billie Holiday servirá de consolo...
Marcos - Uma namorada que se consola ouvindo Billie Holiday...é o fim!
Clarice - E o que você entende de jazz? Energúmeno!
Marcos - Tanto quanto você. Clarice, me diga, onde ficou a sua dignidade?
Clarice - Acho que na minha primeira brochada com você...
Marcos - Essa sua eterna mania de nostalgia feliz. Ainda acabo com essa vidinha sem sentido.
Clarice - Se precisar de ajuda me procure.
Marcos – Não será preciso. Posso cuidar disso sozinho.
Clarice - Meu Deus o que seria de mim sem Bergmam, Godar, Fellini, Almodóvar...
Marcos - Seria menos boboca e sentimental. Acorda pra vida, Clarice!
Clarice - Essa “vida” ficou apertada pro meu ego.
Marcos - Nos seus delírios diários e incompletos, não pensa que talvez possa esquecer de alimentar o cachorro?
Clarice - O cachorro em questão é você?
Marcos - Não, o cachorro em questão é o Jorge. Você ainda se lembra do Jorge, não lembra?
Clarice - Não coloque o Jorge nisso. Ele nunca foi tão baixo e se atreveu a falar mau dos meus exs..
Marcos - Exs, é isso mesmo? No plural?
Clarice - Eu não gosto de me gabar. Sabe como é?
Marcos – Se Gabar, do que? De ser uma nojenta de uma puta? De ter trepado com tantos homens que nem que eu quisesse conseguiria contar nos meus dedos. Incluindo aí pés e mãos.
Clarice - O que você chama de puta nojenta, eu chamo de mulher atraente, com borogodó, sex-appel. Entende?
Marcos - Puta, isso sim. E da pior espécie, daquelas que são piranhas não por profissão, pra sobreviver. São putas por prazer.
Clarice - E qual é o problema? Se têm uma coisa que eu nunca fui foi frígida. Adoro uma boa trepada. Tudo bem para você? Mas nem nisso você serve mais...o que é uma lástima.
Marcos - Sabe o que eu deveria fazer?
Clarice - Sim, baby?
Marcos - Eu devia era te jogar pela janela deste prédio fétido. E sonhar eternamente com Sophia
Clarice - Não quero te desapontar, aliás quero, mas acho que ela não se interessaria por um operário sul-americano duro, brocha e com paranóia de desemprego. Não necessariamente nessa ordem.
Marcos - Você adora frases feitas, não?
Clarice - Adoro. Você não?
Marcos - Eu prefiro o silêncio.
Clarice - O silêncio foi tudo o que você têm me dado nesses últimos anos...
Marcos - Pensei que que vocês mulheres já tivessem se acostumadas a esse pequeno detalhe da personalidade masculina...
Clarice - Sabe, isso é gradativo. Primeiro nos acostumamos com o telefonema que não vem, depois a toalha molhada em cima da cama, o silêncio após o sexo para, enfim, nos acostumar-mos com as brochadas constantes...
Marcos - Isso já está se tornando uma obsessão. De novo esse história, Clarice?
Clarice - Magoou, é?
Marcos - Cafetina desclassificada.
Clarice - Cafetina, é? Então me responda Marcos, quem eu estou cafetinando? Não vai me dizer que é você.
Marcos – Vá se foder sua escrota! Porca!
Clarice - Já vi que você não lida bem com pressão.
Marcos - Não me provoque sua bandida. Te meto a mão na cara.
Clarice - Não faria isso. Você não iria querer engrossar a lista da Delegacia de Mulheres de maridos que espancam suas mulheres. Iria?
Marcos - Vai pagar pra ver?
Clarice - Olha Marcos eu não quero me tornar ph.d em cafajeste
Marcos - Você já é ph.d em um monte de outras coisas...
Clarice - Por exemplo?
Marcos - Como por exemplo: falar um monte de bobagens por segundo.
Tá bom pra você?
Clarice – Existe alguém ph.d em broxadas? Não, não responda. Deixa eu pensar...
Marcos – Meu bem, sarcasmo não combina com você.
Clarice - Sabe Marcos, eu estou cansada dessa vida.
Marcos - Sério?
Clarice - É, não aguento mais.
Marcos - Eu fui muito mau com você, fui?
Clarice - É, sério. Isso está muito autodestrutivo.
Marcos - “Muito autodestrutivo...” , qual é Clarice? Que papo de livro de auto ajuda é esse?
Clarice - Eu acho que não te amo mais...
Marcos - E quem falou em amor? Pirou mulher?
Clarice - Como você pode ser tão insensível? E os anos que vivemos juntos, não contam?
Marcos – Pobre Clarice, sempre tão dramática!
Clarice - Chega Marcos! Eu não vou mais me humilhar por um pouquinho de afeto e atenção seu. Vou para casa de mamãe. Cansei.
Marcos - Isso corre pros braços da mamãe. Mas acho, sinceramente, que você já passou da idade. Aliás, tudo já passou da idade. O nosso relacionamento, ou seja lá o que isso for. Já está a muito com o prazo de validade vencido.
Clarice - [silêncio]
Marcos - O que você está esperando? Vai embora de uma vez! Suma daqui sua desgraçada!
Clarice - Eu não queria que que tudo isso terminasse assim, dessa forma...
Marcos - É, mas terminou. E sinceramente não acho que um de nós irá morrer por causa disso.
Clarice - Você nunca me amou, não é mesmo Marcos?
Marcos - Já te disse que amor não tem nada haver conosco. Não vê que tudo não passou de uma troca, uma curtição. Te dei sexo e alguma proteção e você algum sexo e muita chateação. Rimou. Viu
Clarice, nossa vida se resume a uma rima barata...
Clarice - Acho que ambos ficamos insatisfeitos.
Marcos - Como você é melodramática. Coisa mais deprimente...
Clarice - Eu...eu...
Marcos - O que foi vai chorar de novo, vai?
Clarice – (silêncio)
Marcos – Olha Clarice, eu nunca te prometi nada além de sexo. Não me faço sair disso como vilão. O cafajeste que deflorou a donzela indefesa.
Clarice – Você era tão amável.
Marcos – Que amável o que. Eu simplesmente te comia como você queria. O resto é sombra de árvore alheia. Isso é do Fernando Pessoa, não é?
Clarice cantarola baixinho pra si mesma - “...você precisa saber da piscina da margarina da Carolina, da gasolina, baby, baby, eu sei que é assim...”.
Clarice - O que?
Marcos - É, onde é que eu assino?
Clarice - Assina o que?
Marcos - A sua tão almejada carta de alforria...
Clarice - Não precisa, nós nunca nos prendemos a um pedaço de papel.
Marcos - Acho que somos pessoas inteligentes. Podemos ser pessoas inteligentes Clarice?
Clarice - O que inteligencia tem haver com nós?
Marcos - É verdade. Nosso relacionamento é a prova cabal da nossa burrice homérica. Deve ser karma de vidas passadas...
Clarice - Não me inclua nisso! Seu escroque.
Marcos - Adorei o adjetivo novo. Tem mais algum no bolso? Preciso tomar um vinho. Discutir relação me dá uma sede...
Clarice – Cuidado, vai acabar dizendo coisas que irá acabar se arrependendo depois.
Marcos - Não vejo o porquê do receio. Já disse tudo que queria. Faltou algo? Acho que não.
Clarice - Como eu pude me interessar por alguém como você?
Marcos - Não faço a mínima idéia. Jogue os búzios. De repente...
Clarice - Isso não é um jogo Marcos. Não para mim.
Marcos - Eu vi você se insinuando para o Alberto na festa da Tânia. Que coisa feia.
Clarice - Você sempre teve uma mente muito sórdida. Além de extremamente fértil. Presumo que seja uma forma de compensar o seu pequeno problema de ordem sexual. Acertei?
Marcos - Presuma o que você quiser. Eu não ligo a mínima.
Clarice - Não me trate como eu eu fosse um all star velho que você se cansou de usar.
Marcos -Eu não tenho culpa dos seus problemas de baixa auto-estima. Mas a comparação com o all star velho é bem interessante.
Clarice - Você fez algum curso de cafajeste por correspondência? Deveria pedir o dinheiro de volta.
Marcos - Não, minha cara aprendi com minhas exs. Vai dizer que vocês não adoram uma homem cafajeste?
Clarice - É claro que não!
Marcos - É claro que sim. Se você quer se dar bem e comer alguma mulher mais ou menos, tem que fazer um puta esforço para ser e parecer o último cafajeste da face da terra.
Clarice - Deus do céu, como você é desprezível.
Marcos - Merci.

domingo, julho 15, 2007














Dor e Delícia


“Sua obra é ácida e frágil, dura como o aço e fina como a asa de uma borboleta. Cativante como um sorriso e cruel como as aguras da vida. Creio que jamais, até hoje, uma mulher depositou tanta agonia e poesia nas telas.”
Com esse depoimento, na parte final do filme, Diego Rivera sintetiza a pessoa e a obra da genial artista mexicana Frida Kahlo.
Tentar falar e explicar as imagens e cenas do filme é correr o risco de cair no reducionismo que a artista sempre evitou em vida.
Frida transferiu para sua obra toda a dor física e emocional que passou em vida. E não via muito sentido (para as outras pessoas) em suas telas. “Os meus quadros só têm importância para mim.” Ainda questionada por Leon Trotsky nas ruínas de uma civilização antiga sobre como é conviver com a dor ela diz: “Já me cortaram, quebraram e realinharam tantas vezes que pareço um quebra-cabeça.”
Logo no início do filme é mostrado um acidente cruel sofrido pela pintora. Acidente esse que foi uma espécie de mola propulsora para o mergulho na arte e na vida feito por ela e o início de uma seqüência de dores físicas, emocionais, sexuais, filosóficas e existenciais vividos pela artista. Há uma cena particularmente emblemática em que ela num processo de recuperação dos movimentos via fisioterapia é colocado nela uma espécie de espartilho de ferro e ela num momento de criação retrata a si mesma com aqueles ferros fazendo parte do seu corpo e uma lágrima escorrendo dos seus olhos.
O filme utiliza-se várias vezes da fusão das pinturas com os personagens de carne e osso. Brincando com os nossos sentidos cognitivos visuais.
Um outro cenário que de certa forma ilustra bem a força visual e vibrante da obra da pintora é o pátio da sua casa. O azul intenso junto com animais e estátuas exóticas retratam a luminosidade e intensidade da obra da artista.
Ao final do filme temos a belíssima imagem de Frida (em chamas) numa cama com dossel em seus “momentos finais” transformada em pintura. O seu semblante plácido e sereno de uma artista que cumpriu o papel a que se propôs em vida. Semblante de uma artista a frente de seu tempo que transformou a sua dor e inquietude em arte. Tirando beleza e lirismo da dor e da delícia de viver intensamente.
“Pés, para que preciso deles, se tenho assas pra voar?”.

segunda-feira, novembro 27, 2006
















A objetividade da fotografia
não existe.
Erram os que acham
que ela retrata o real.
O que há é que
quando o fotográfo
diz:
Olha o passarinho!
Uma ave de assas obilongas
sai de dentro do olho
da câmera com
o embornal de pinceizinhos
e uma paleta de cores.
Sobrevoa a cabeça do fotográfo
e pousa sobre o seu ombro esquerdo.
E de lá, pinta a cena.
Em suma, a fotografia, é
uma ópera de passarinhos.

(Ópera de Passarinhos/Chacal)

quinta-feira, novembro 16, 2006

Adriana Calcanhotto





















SOU DO RIO GRANDE NÃO TENHO MEDO DE NADA. AMO O RIO DE JANEIRO. TENHO DIFICULDADE EM DIZER NÃO. GENTE CARETA ME ESNOBA. TENHO PÉSSIMA MEMÓRIA PARA NOMES. EU QUASE NÃO GOSTO DE MÚSICA. USO A MESMA CALÇA PRETA HÁ TRÊS ANOS. COZINHO MUITO BEM, MAS TENHO PREGUIÇA. ODEIO ABÓBORA. AMO ELIZABETH TAYLOR. NUNCA FIZ COLEÇÃO. ADORO AJUDAR MEUS AMIGOS SE ALGO ESTIVER A MEU ALCANCE. SOU LENTA PARA REVIDAR. ADORO CORES. NÃO TOLERO ACOMODAÇÃO DE GENTE QUE TRABALHA COMIGO. SOU PONTUAL. SOU DO RIO GRANDE NÃO TENHO MEDO DE NADA. AMO O RIO DE JANEIRO. TENHO DIFICULDADE EM DIZER NÃO. GENTE CARETA ME ESNOBA. TENHO PÉSSIMA MEMÓRIA PARA NOMES. EU QUASE NÃO GOSTO DE MÚSICA. USO A MESMA CALÇA PRETA HÁ TRÊS ANOS. COZINHO MUITO BEM MAS TENHO PREGUIÇA. ODEIO ABÓBORA. AMO ELIZABETH TAYLOR. NUNCA FIZ COLEÇÃO. ADORO AJUDAR MEUS AMIGOS SE ALGO ESTIVER A MEU ALCANCE. SOU LENTA PARA REVIDAR. ADORO CORES. NÃO TOLERO ACOMODAÇÃO DE GENTE QUE TRABALHA COMIGO. SOU PONTUAL. PARO NO SINAL VERMELHO. TORRO PEQUENAS FORTUNAS EM LIVROS DE ARTE. DETESTO GENTE SEM HUMOR. ÀS VEZES DOU ESMOLAS. AMO MILES DAVIS. RECLAMO MUITO. SEI PEDIR DESCULPAS. COMPRO DISCOS PELA CAPA. NÃO GUARDO MÁGOAS. ADORO BICHOS. NÃO LIGO PRA DINHEIRO. MORO NO JARDIM BOTÂNICO EM UM PEQUENO APARTAMENTO PINTADO DE AMARELO. OUÇO TODAS AS FITAS QUE ME MANDAM. ADORO DANÇAR. AMO BALANCHINE. NÃO SUPORTO A SÍNDROME RETRÔ. DETESTO QUINQUILHARIAS. AMO MONDRIAN. GOSTO DE LAVAR LOUÇA. PRECISO FICAR SOZINHA. GOSTO DO BOTAFOGO. TORÇO PELO GRÊMIO. NÃO SEI JOGAR CARTAS. ADORARIA FAZER UMA TRILHA PARA CINEMA. GOSTARIA DE JOGAR GOLFE. AMO TÀPIES. BEBO CAFÉ DEMAIS. NÃO GOSTO DE AR CONDICIONADO. MINHA MÃE DIZ QUE EU MUDO MUITO. SOU ESGANADA. DETESTO VERDE-PISCINA. AMO JOÃO CABRAL. NÃO SEI TOCAR VIOLÃO. TOCO VIOLÃO BEM. TENHO BRAÇOS LINDOS. IBERÊ CAMARGO PINTOU MEU RETRATO. CONHEÇO E RECONHEÇO AS PESSOAS PELAS MÃOS. NÃO TOLERO DESPERDÍCIO. DETESTO COURANT D'AIR. AMO LINA BO BARDI. EU NÃO GOSTO DO BOM GOSTO. DETESTO REMÉDIO. SOU MUITO PELUDA. ADORO A RAINHA DA INGLATERRA. ADORO BRIE. GENTE CAFONA ME ESNOBA. NUNCA SOUBE O QUE FAZER COM AS MÃOS NA PRESENÇA DE CELEBRIDADES. MEUS AMIGOS DIZEM QUE EU MUDO MUITO. SEMPRE FUI FELIZ NO AMOR. AMO MARLON BRANDO. ADORO O GUIMAS DA GÁVEA. NÃO VIVO SEM CHAMPANHE. TENHO UM "BICHO" DE LYGIA CLARK. DURMO BEM MENOS DO QUE GOSTARIA. ADORO GENTE QUE DIZ "É RUIM HEIN?!". DETESTO GENTE QUE MITIFICA. GOSTO MUITO DE DIRIGIR. NÃO GOSTO DE MISTÉRIO. DESPREZO GENTE FITEIRA. ADORO VERMELHOS E ROSAS. HOSPEDO INFRATORES E BANIDOS. PAREI DE FUMAR. NÃO TENHO SUPERSTIÇÃO ALGUMA. AMO JOHN CAGE. NUNCA QUIS TER FILHOS. A PRIMEIRA PALAVRA QUE EU LI FOI "MÉXICO". NÃO GOSTO DE ME APRESENTAR NA TELEVISÃO. ADORO MINHAS MÃOS. ADORO RIR DE MIM MESMA. SOU PERDIDA POR GENTE DOIDA. AMO ISSEY MIYAKE. DETESTO VELHARIAS. JORNALISTAS DIZEM QUE EU MUDO MUITO. DESPREZO GENTE QUE SE LEVA A SÉRIO. ADORO ARISTOCRATAS. NÃO SEI VIVER SEM FRUTAS. SOU BASTANTE DISCIPLINADA. QUERO MUITO CONHECER O EGITO. TENHO INVEJA DOS ELEFANTES. AMO AUGUSTO DE CAMPOS. ADORO CORES DO MEDITERRÂNEO. ADORO A COMIDA DA PROVENCE. NÃO SUPORTO FREESHOP E AQUELE MONTE DE BUGIGANGAS. DETESTO GENTE DESLUMBRADA. AMO MERCE CUNNINGHAM. QUERO FAZER CANÇOES BEM SIMPLES. QUERO SABER PARA QUÊ SERVE UMA CANÇÃO. AMO ANDY WARHOL. SOU ESTRÁBICA. ADIO DECISÕES MUITO IMPORTANTES. CALÇO 38. TENHO UM "TREPANTE" DE LYGIA CLARK. ADORO VINHO. NÃO SEI DAR ENTREVISTAS. ADORO A MANGUEIRA. EU QUERO O MORRO DOIS IRMÃOS ILUMINADO. ADORO MERGULHAR EM ANGRA. AMO MARIO PEIXOTO. GENTE INCULTA ME ESNOBA. ADORO AZUIS. ADORO KLEIN. ADORO KLEE. AMO MATISSE. EU SEMPRE DIGO SIM. EU GOSTO DE FAZER SHOWS. ADORO CANTAR NO RIO. EU DURMO NO AVIÃO. SOU GENEROSA EM DEMASIA. AMO GERTRUDE STEIN. SOU LOUCA POR ORQUÍDEAS. ESTOU FULMINADA POR UM AMOR HÁ SETE ANOS. AMO HÉLIO OITICICA. ADORO JOAQUIM PEDRO. DETESTO ESTETIZAÇÃO. ODEIO FOLCLORIZAÇÃO. EU NÃO GOSTO DE ME VER NO VÍDEO. AMO OSWALD DE ANDRADE. TENHO UMA LITOGRAVURA DO MIRÓ. NO INVERNO NÃO TOMO CAFÉ DA MANHÃ SEM MORANGOS. NO VERÃO NÃO TOMO CAFÉ DA MANHÃ SEM MELANCIA. AINDA TEREI UM MÓBILE DO CALDER. COMETO BARBARIDADES POR UM SWATCH.
"DIZEM QUE EU MUDO MUITO".


terça-feira, outubro 17, 2006













“Há quem prefira urtigas”




“Quando Ana sai do seu mundo (a organização que ela dava aos fatos da vida) e entra no mundo (o caos informe, o desconhecido), ela perde a falsa identidade que mantinha para os outros, a personalidade retificada, para enfim construir uma nova identidade mais autêntica, na qual ela entra em contato com os seus demônios interiores, desafia as normas sociais de bom comportamento e sente-se livre, absolutamente livre. Dentro do seu casco, dentro do seu universo familiar, Ana se mantinha dentro dos limites de uma vida artificial, sem o contato íntimo com o seu Eu profundo”.


Ana acordou sentido dores no estomago. Pequenas fisgadas. Como se fossem bichos. À espreita. Querendo sair. Como um calango. Faminto. Decidiu matar o marido. Nesta mesma manhã das dores abdominais. Enquanto lavava as louças do café, pensava em como faria isso. Ou melhor, que arma usaria para consumar seu ato homicida. Foi quando teve a revelação. Cravaria uma faca no seu peito. Sim. Usaria a faca de aço inox que ganhara no dia das mães. Não entendia essa obsessão dos homens em dar utensílios domésticos no dia das mães. Detestava mães. Dia das mães. E tudo que de alguma forma remetessem a elas. Não tivera filhos. Não gostava de crianças. Elas sempre lhe pareceram seres de outro mundo. Temperamentais e insubordinadas. Além do mais havia as fraldas. Coisa asquerosa. Trocar fraldas. Definitivamente a vida doméstica não lhe apetecia. Nenhum pouco. Estava destinada ao luxo e a sofisticação. Pena não ter combinado com o destino. Destino. Sujeitinho estranho. O que Bette Davis faria numa situação como essa? Ascenderia um cigarro. Na certa. Beberia consternada por todos os seus fantasmas. Enxotados de seu guarda-roupas velho. Que manhã com gosto de desesperança. Amargo. Parece-me que fui pega em flagrante. Condenada as zilhões de anos no purgatório. Por superávit de pecados e amoralidade. Ana. Ana. Devagar com a louça. Xícara quebrada. Mais uma. Sorte.
Queria mesmo é ter sido arquiteta. Planejar e realizar o sonho de pessoas. Pessoas sofisticadas. Cultas. Importantes. Pensar e organizar os espaços. Proporcionar maior conforto aos ocupantes. Conforto. Nunca experimentou conforto algum. Tudo o que sobrou foi uma vidinha proletária. Ao lado de um gordo escroto. Meu marido. Imagine eu, Ana casada com um caixa de banco. Um reles caixa de banco. O que é um caixa de banco? Nada. E a sua esposa? Menos ainda...
Precisava de uma música. Como nos melhores suspenses Hitchcockianos. Que trilha usaria? Nina Simone? Não, muito sensual. Ella Fitzgerald? Talvez...Quem sabe Julie London. Que música? Elegante e fatalista ao mesmo tempo... Cry me a river. Perfeita!
Olhou para as unhas. Estavam horrendas. Precisava ir a manicure. As mãos deveriam estar impecáveis para o último ato de hoje à noite. Além do cabelo. Tinha de dar um jeito naquele cabelo.
Enquanto lavava os talheres, deixando-se levar por pensamentos prosaicos, tirou uma lasquinha do dedo. Instintivamente chupo-o. Isso a deixou ligeiramente excitada.
Tinha um marido gordo e suarento que a possuía. Quase sempre a sufocava com o peso descomunal de suas epidermes super infladas. E roncava, o porco. Por vezes, levantava-se então e, chorando baixinho masturbava-se. Pensava em ir embora, mas, voltava. Rolava e tentava dormir. Ana, Ana...Ainda ostentava um ar de romance fracassado. Daqueles de folhetis baratos. Vendidos em bancas de jornal para donas de casa frustradas. Um Odair José encadernado em edições de bolso.
Vinte e dois anos desperdiçados. Numa vida que definitivamente não era a sua. Um Sinatra decadente. Cantando pela milésima vez, “My Way”.