terça-feira, outubro 17, 2006













“Há quem prefira urtigas”




“Quando Ana sai do seu mundo (a organização que ela dava aos fatos da vida) e entra no mundo (o caos informe, o desconhecido), ela perde a falsa identidade que mantinha para os outros, a personalidade retificada, para enfim construir uma nova identidade mais autêntica, na qual ela entra em contato com os seus demônios interiores, desafia as normas sociais de bom comportamento e sente-se livre, absolutamente livre. Dentro do seu casco, dentro do seu universo familiar, Ana se mantinha dentro dos limites de uma vida artificial, sem o contato íntimo com o seu Eu profundo”.


Ana acordou sentido dores no estomago. Pequenas fisgadas. Como se fossem bichos. À espreita. Querendo sair. Como um calango. Faminto. Decidiu matar o marido. Nesta mesma manhã das dores abdominais. Enquanto lavava as louças do café, pensava em como faria isso. Ou melhor, que arma usaria para consumar seu ato homicida. Foi quando teve a revelação. Cravaria uma faca no seu peito. Sim. Usaria a faca de aço inox que ganhara no dia das mães. Não entendia essa obsessão dos homens em dar utensílios domésticos no dia das mães. Detestava mães. Dia das mães. E tudo que de alguma forma remetessem a elas. Não tivera filhos. Não gostava de crianças. Elas sempre lhe pareceram seres de outro mundo. Temperamentais e insubordinadas. Além do mais havia as fraldas. Coisa asquerosa. Trocar fraldas. Definitivamente a vida doméstica não lhe apetecia. Nenhum pouco. Estava destinada ao luxo e a sofisticação. Pena não ter combinado com o destino. Destino. Sujeitinho estranho. O que Bette Davis faria numa situação como essa? Ascenderia um cigarro. Na certa. Beberia consternada por todos os seus fantasmas. Enxotados de seu guarda-roupas velho. Que manhã com gosto de desesperança. Amargo. Parece-me que fui pega em flagrante. Condenada as zilhões de anos no purgatório. Por superávit de pecados e amoralidade. Ana. Ana. Devagar com a louça. Xícara quebrada. Mais uma. Sorte.
Queria mesmo é ter sido arquiteta. Planejar e realizar o sonho de pessoas. Pessoas sofisticadas. Cultas. Importantes. Pensar e organizar os espaços. Proporcionar maior conforto aos ocupantes. Conforto. Nunca experimentou conforto algum. Tudo o que sobrou foi uma vidinha proletária. Ao lado de um gordo escroto. Meu marido. Imagine eu, Ana casada com um caixa de banco. Um reles caixa de banco. O que é um caixa de banco? Nada. E a sua esposa? Menos ainda...
Precisava de uma música. Como nos melhores suspenses Hitchcockianos. Que trilha usaria? Nina Simone? Não, muito sensual. Ella Fitzgerald? Talvez...Quem sabe Julie London. Que música? Elegante e fatalista ao mesmo tempo... Cry me a river. Perfeita!
Olhou para as unhas. Estavam horrendas. Precisava ir a manicure. As mãos deveriam estar impecáveis para o último ato de hoje à noite. Além do cabelo. Tinha de dar um jeito naquele cabelo.
Enquanto lavava os talheres, deixando-se levar por pensamentos prosaicos, tirou uma lasquinha do dedo. Instintivamente chupo-o. Isso a deixou ligeiramente excitada.
Tinha um marido gordo e suarento que a possuía. Quase sempre a sufocava com o peso descomunal de suas epidermes super infladas. E roncava, o porco. Por vezes, levantava-se então e, chorando baixinho masturbava-se. Pensava em ir embora, mas, voltava. Rolava e tentava dormir. Ana, Ana...Ainda ostentava um ar de romance fracassado. Daqueles de folhetis baratos. Vendidos em bancas de jornal para donas de casa frustradas. Um Odair José encadernado em edições de bolso.
Vinte e dois anos desperdiçados. Numa vida que definitivamente não era a sua. Um Sinatra decadente. Cantando pela milésima vez, “My Way”.

sexta-feira, outubro 06, 2006






















"Jardim de Cactus"






Marta acordou tremendo. Fazia muito frio àquela hora da manhã. Parece não ter tido pesadelos naquela noite. A única coisa que se lembrava era que precisava fumar um cigarro. Mas, onde tinha colocado o maço? Teria ainda ao menos um solitário na bolsa? Nada. Talvez ele tivesse. Procurou em todos os bolsos da sua calça.Em vão. Ele disse que tinha parado de fumar. Droga!
Começou a se vestir para descer e comprar um maço novo, quando percebeu um movimento na cama. Ele era tão bonito enquanto dormia. Gostava de ver pessoas dormindo. Parecem tão desprotegidas. Mas, naquele momento não gostou de ter alguém dormindo na sua cama. Podia ouvir de longe, em algum apartamento a canção: “...e se não houvesse o amor...”. Uma sensação ruim brotou no seu peito.
Pedro era o nome dele, ou pelo menos era o nome que ele lhe dera quando se conheceram. Já fazia algum tempo que estavam juntos. Ma sempre tivera a sensação de tê-lo conhecido na noite passada tamanho era o desconforto em pensar numa relação de quase dois anos com alguém.
Precisava de um cigarro. Enquanto vestia o suéter notou que ele a observava.

Pedro - Aonde você vai?
marta - Comprar cigarros.
Pedro - Devia para de fumar.
Marta - Devia, é?
Pedro - Sim, as pessoas costumam morrer de câncer...
Marta - Morrer-se também de outras formas. Tédio por exemplo...
Pedro - Mas, é bom não facilitar.
Marta - Você me ama?
Pedro - O que?
Marta - Eu perguntei se você me ama.
Pedro - Porque a pergunta a essa hora da manhã?
Marta - Não sei, só queria saber se você me ama.
Pedro - Você e os seus clichês matinais à queima roupa.
Marta - E qual é o problema?
Pedro - Nenhum. Exceto eu ainda não ter tomado o meu café.
Marta - O que uma xícara de café tem haver com isso?
Pedro - O que o amor tem haver com nós?
Marta - O que?
Pedro – Nada.
Marta - Você ainda não respondeu se me ama.
Pedro – Volta pra cama Marta.
Marta – Você me ama?
Pedro - Ai, mãe Deus porque isso é tão importante para você?
Marta – Não me responda com outra pergunta.
Pedro - Não é isso. E que você me pegou desprevenido.
Marta - Peguei você desprevenido?
Pedro - A essa hora da manhã as pessoas precisam de um tempo para acordar. Se situar em mais um dia de cão.
Marta - Sei, agora é a hora inconveniente?
Pedro - Mais ou menos isso...
Marta - Eu...eu...eu não sei te amo mais...
Pedro - O que?
Marta - É, eu não sei te amo mais!
Pedro - Peraí, você esqueceu de tomar o seu Prozac ontem?
Marta - Não.
Pedro - Está de TPM?
Marta - Não.
Pedro - Não foi bom para você ontem?
Marta - Não, não é nada disso. Não se trata de sexo satisfatório ou caixas de antidepressivos.
Pedro - E o que é então?
Marta - Eu não sei se te amo mais...
Pedro - Isso eu sei, quer dizer, você já me disse.
Marta - Acho melhor você tomar logo o seu café.
Pedro - Não quero mais, perdi o apetite.
Marta - Agora a culpa é minha pela sua perda repentina de apetite.
Pedro – E por que não?
Marta - Por que não sou eu que não quer responder a uma perguntinha super simples, feita pela pessoa com quem você mora a quase dois anos.
Pedro - Perguntinha simples, é? Sei...
Marta - E não é?
Pedro - Não nesse momento.
Marta - E qual será o momento?
Pedro - Talvez mais tarde.
Marta - Mais tarde, sempre mais tarde...e depois mais tarde.
Pedro - As vezes eu não te entendo.
Marta - Deve ser mesmo difícil.
Pedro - O que?
Marta - Me agüentar, me entender, dormir comigo, fazer amor comigo, responder minhas perguntinhas super simples.
Pedro - Você é quem está dizendo...
Marta - E você não está fazendo nenhum esforço para discordar.
Pedro - Nós não tínhamos combinado de apenas nos vermos para um sexo casual? Sem envolvimento emocional? Não estava bom para ambos?
Marta - Se entrega Corisco!
Pedro - O que?
Marta - A Maria Bonita se cansou de viver no cangaço.
Pedro - Por que você não pode ser objetiva uma única vez?
Marta - Bem que minhas amigas tinham me dito que você não valia nada.
Pedro - Santo Deus! Agora você acredita em vadias consumidoras de substâncias alucinógenas?Qual será o próximo passo? Papai Noel, coelhinho da páscoa? Francamente eu esperava mais de você.
Marta - É o que as pessoas fazem. Esperam mais dos outros...
Pedro - Isso foi uma crítica?
Marta - Estou começando a pensar que o nosso relacionamento foi um tremendo equívoco.
Pedro - E o que você sugere?
Marta - O que sugiro? Sugiro o que duas pessoas que estão a mais de dois anos juntos fazem quando uma delas percebe que, esse mesmo relacionamento foi um erro. A separação.
Pedro - Separação?
Marta - É, cada um pro seu lado.
Pedro - Você acha mesmo?
Marta - Mas que droga! Que mania de transferir toda a responsabilidade sobre mim nos momentos decisivos.
Pedro - Quem tem medo de Virginia Woolf?
Marta - O que?
Pedro - Richard Burton perguntando à Elizabeth Taylor no final do filme “Quem tem medo de Virginia Woolf?”.
Marta - E o que ela responde?
Pedro - “Eu tenho George. Eu tenho”.
Marta - Nunca vi esse filme.
Pedro - Ela ganhou o seu segundo Oscar pela atuação no filme.
Marta - Só vi “Disque Butterfly 8”, e não gostei. Nunca gostei de Elizabeth Taylor. Sempre me pareceu uma puta bem maquiada em filmes de quinta.
Pedro - Não fale assim dela. Ela não tem culpa dos nossos problemas conjugais.
Marta - Não fui eu quem começou com esse momento cinéfilo existencialista.
Pedro - Você nunca gostou dos clássicos do cinema. Sempre preferiu os filmes descerebrados da prateleira de lançamentos da vídeolocadora.
Marta - Está sugerindo que sou descerebrada?
Pedro - Pense o que quiser...
Marta - Eu não penso querido. Sou descerebrada, lembra?
Pedro - Ironia não combina com você.
Marta - Quer saber, qualquer filme do Glauber consegue ser mais objetivo que você.
Pedro - Ah, não! Agora você está me ofendendo. Glauber mais objetivo que eu...só rindo.
Marta - Eu entendi o final de “Deus e o diabo na terra do sol”, e você não.
Pedro - Ninguém entendeu esse ou qualquer outro filme do Glauber.
Marta - Não tome os outros por você querido. Ninguém tem culpa das suas limitações intelectuais.Exceto você, é claro!
Pedro - Agora além de formuladora de perguntas fora de hora, você deu para ser especialista am desmascarar pseudo-intelectuais?
Marta -Vá se foder seu escroto de merda.
Pedro - Nós acabamos de nos foder agora a pouco.
Marta - Fodemos, é? Não se esqueça de deixar o dinheiro em cima da mesa.
Pedro - Ironia definitivamente não combina com você.
Marta - E inteligência com você.
Pedro - A sua mediocridade me comove.
Marta - Não me diga. Descobriu esse pequeno detalhe agora?
Pedro - Fiz um curso de vidência por correspondência ainda ontem.
Marta - Quando pensamos que seria para sempre?
Pedro - O que?
Marta - É, em que momento da nossa vida pensamos que seria para sempre?
Pedro - Sei lá.
Marta - Acho que nunca saberemos.
Pedro - Preciso de uma xícara de café.
Marta - E eu fumar um cigarro.